Modelo do Quadro dos Limites Planetários e Sociais proposto pela economista e cientista Kate Hawork |
Há
décadas ambientalistas e cientistas vem alertando sobre os impactos
das atividades humanas sobre o meio ambiente em escala global. Os
primeiros avisos surgiram através do livro “Primavera Silenciosa”
(Silent Spring, 1962)
da bióloga Rachel Carson, que alertava sobre os efeitos nocivos dos
agrotóxicos1.
Primeira edição do livro Silent Spring (Primavera Silenciosa), de Rachel Carson, publicado em 1962. |
Rachel Carson (Foto: Alfred Eisenstaedt/Time Life Pictures, via Getty Images, in The New York Times) |
Em
1965 a Comissão de Aconselhamento à Presidência dos Estados Unidos
alerta que o efeito estufa é uma preocupação real, e em 1975 o
cientista americano Wallace Broecker lança o termo “aquecimento
global” no domínio público ao usá-lo no título de um de seus
artigos científicos2. Desde então, além dos poluentes químicos
como os agrotóxicos e das mudanças climáticas, vários outros
problemas ambientais em escala planetária vem sendo identificados. E
no conjunto configuram o quadro das “mudanças globais”.
Não
obstante, a ciência vem mostrando que o desfecho dos acontecimentos
vem configurando um cenário pior do que as expectativas e
previsões científicas mais pessimistas. Estamos definitivamente
alterando de forma definitiva e irreversível o planeta como um todo3.
Mesmo locais inóspitos e intocados diretamente pela mão humana
estão sendo atingidos pelos impactos das mudanças ambientais
globais.
Aqui
no Brasil ainda não nos damos conta do que vem ocorrendo, pois somos
privilegiados do ponto de vista ambiental. Gozamos da maior área
habitável do mundo, o melhor clima para a sobrevivência e para a
agricultura, os melhores solos e maiores áreas para a agricultura, a
maior biodiversidade do plante e as maiores reservas de água e de
muitos minerais importantes, incluindo o petróleo. Essa condição favorável ameniza os impactos dos efeitos das mudanças sobre a vida das pessoas.
Porém,
para os mais atentos a atual conjuntura planetária – segundo as
palavras do professor Dr. Johan Rockström, pesquisador e diretor
executivo do Centro de Resiliência de Estocolmo (Stockholm
Resilience Centre), na Suécia – na qual passamos a ser “um
grande mundo num pequeno planeta” tornou-se algo notável e
inegável. Mais que isso, essa nova conjuntura está estampada nas
mídias. Percebi isso folhando recentemente uma edição do jornal
Correio do Povo, mais precisamente a edição de 25/09/20184.
Pesquisador e Diretor Executivo do Centro de Resiliência de Estocolmo (Universidade de Estocolmo, Suécia) na Cúpula das Novas Fronteiras na Nova Zelândia (Foto: Medium). |
Porém,
as pistas dessa nova conjuntura planetária não são tão fáceis de
serem percebidas, pois estão fragmentadas e dispersas. E estabelecer a visão
integrada dos fatos isolados pela mídia não é tarefa fácil. Mas é
o desafio necessário de quem quer estar um passo à frente no
entendimento da realidade atual.
Por
exemplo, as mudanças ambientais sobre as quais ouvimos falar
frequentemente vieram para ficar. O clima tem se tornado cada vez
mais instável e imprevisível, com eventos extremos cada vez mais
intensos e frequentes. Na edição já mencionado do Correio do Povo
verifiquei as seguintes matérias: “Chuva contínua provoca
alagamento”, “Moradores das ilhas bloqueiam BR 290” e “Voos
são cancelados em Passo Fundo”. Todas notícias relacionadas com
consequências de eventos climáticos incomuns. Esse tipo de notícia
seria esperado para o inverno, em meados de agosto, quando as
planícies de inundação do sul do país normalmente passariam pela
inundação típica do final do inverno causada pela saturação das
bacias e grande volume de chuvas do período. Soma-se a isso a
previsão de uma primavera chuvosa e menos quente5, quando a primavera deveria ser a
estação mais seca do ano por essas bandas do sul.
O comportamento incomum do clima que vem sendo registrado é causado pelo fenômeno do “El Niño”. Então está tudo bem, pois o “El Niño” sempre existiu! Estaria se não fosse o fato de qua “antigamente” o “El Niño” ocorria mais ou menos a cada 5 anos. Porém, atualmente sua frequência e intensidade tem sido cada vez maior6.
Alterações na ocorrência de eventos de El Niño extremos al longo do tempo (Wang et al. 2017). |
Mas
as mudanças não são só ambientais. São também sociais. Podemos
perceber um indicativo disso nas matérias da mesma edição: “Porto
Alegre pretende virar uma ‘smart city’”, “Greve geral na
Argentina (contra acordo com o FMI)”. Duas características na nova
sociedade do Antropoceno são notadas aqui: a mudança de uma
sociedade burocrática para uma sociedade tecnocrática e a
emergência de manifestações sociais que afetam relações
internacionais, ambas traços do mundo tecnológico globalizado.
Entretanto,
os conflitos a serem enfrentados são maximizados pela ignorância da
sociedade em relação aos problemas do mundo globalizado – social
e ambientalmente. Ainda pensamos no agente poluidor como algo
desconectado do ambiente que recebe a poluição. Não se trata
somente de diminuir a poluição para enquadrar as emissões em
limites estabelecidos em leis específicas. Isso quer dizer que as
mudanças ambientais não são uma externalidade. Somos parte do
ambiente onde vivemos, estamos intimamente conectados com a natureza e sofremos junto com ela as consequências da degradação ambiental.
E mesmo que reduzamos as emissões, estamos alterando a superfície
do planeta de muitas outras formas, mudando processos importantes que
mantém o equilíbrio da composição da atmosfera, do clima e da
produtividade dos sistemas dos quais dependemos para sustentar a
humanidade3.
Parte do satélite Sygnus em primeiro plano e a região da Europa ao fundo à noite (Fonte: Nasa; Edição de imagem: Jerry Wright, 07/08/2017). |
Tais
mudanças levam a desafios gigantescos devido a conflitos que só
tendem a se intensificar caso não haja uma mudança radical na forma
como interagimos em sociedade e com a natureza. Podemos verificar um exemplo desses
conflitos na mesma edição do Correio do Povo, na
matéria: “Cotações (da carne) passam por período de baixa –
Necessidade de liberar campo para soja e consumo interno deprimido
elevam oferta”. Por um lado, o aumento do preço da carne tem
levado ao consumo reprimido. Por outro, a pressão sobre o solo
visando cada vez mais intensificar o seu uso para produzir, leva ao
conflito entre o uso como pastagem e como área de cultivo de soja.
Então, o gado deve ser vendido para liberar o solo, mas o consumo
está menor devido ao alto preço. Ou seja, o custo dos recursos
aumentam enquanto a pressão sobre os mesmos também aumenta. Como
reduzir a pressão insustentável sobre o solo e ao mesmo tempo
reduzir o custo do acesso aos recursos? Eis um dos grandes desafios
da sociedade do Antropoceno.
Outra
pista da crescente pressão sobre o solo está implícita na matéria:
“Evento discute uso de solo no inverno”. Assim, além da
concorrência entre culturas pelo mesmo espaço de solo, existe ainda
a tendência do uso contínuo, sem descanso, do solo. Toda essa
pressão sobre esse recurso tão vital só poderá levar a um
resultado: o esgotamento sistemático da capacidade do solo suprir os
serviços básicos à produção de alimento.
Outro
recurso importante para o modelo atual de desenvolvimento é o
petróleo. Na mesma edição do Correio do Povo aparece a matéria:
“OPEP segura produção e alavanca o preço”. A OPEP é a
“Organização dos Países Exportadores de Petróleo”. Essa
matéria expõe algo muito importante na sociedade do mercado: o
‘lucro’ é um dos fatores mais importantes na tomada de decisão
– em detrimento de fatores sociais e ambientais. Essa é uma
distorção grave da foma como nos relacionamos com o planeta e a
sociedade. Quem está no centro das decisões: o lucro, o capital ou
as pessoas, a natureza?
Essa
dicotomia tem caracterizado a sociedade desde de a revolução
industrial – talvez bem antes se pensarmos que a moeda apenas
substituiu outras formalizações do poder que existiam no passado –
e está no cerne das disputas políticas. Contudo, nessa disputa se
perde algo importante de vista. Algo que parecia não existir até
pouco tempo: o risco do colapso da civilização. Não é mais
possível esconder o horizonte que se descortina para a humanidade
através das descobertas científicas e dos fatos do dia a dia.
Dentro de pouco tempo não será possível o desenvolvimento, seja
econômico, seja social, caso não ocorra uma mudança radical no
modo como lidamos com os recursos naturais.
A economista e cientista Kate Raworth alerta para as falhas do modelo de desenvolvimento econômico, que não inclui o ser humano e a natureza, e que deve ser completamente revisto7. Assim, nosso modo de conduzir a sociedade, de nos relacionarmos com a natureza e gerir nossa economia precisam ser profundamente repensados, implicando em amplas e profundas mudanças, E a ciência nos diz que
o caminho para essa mudança passa pela justiça social e eficiência
ecológica7,8.
Economista inglesa Kate Raworth. Também é pesquisadora do Instituto de Mundança Ambiental (Environmental Change Instituto) da Universidadede Oxford. |
De
uma forma ou de outra a humanidade terá que se adaptar às mudanças
em curso. O que exatamente isso significa é difícil dizer.
Dependerá muito de escolha que faremos como indivíduos e como
coletivo, nas instituições formais e informais nas quais atuamos.
Algumas certezas já existem. É certo que o estilo de vida
consumista imposto pela sociedade industrial vem se mostrando mal
sucedido e uma péssima escolha3,7,8.
Leon Maximiliano Rodrigues
Referências
1Carson,
Rachel. 1962. Silent spring. Boston, MA, United States:
Houghton Mifflin Company, 368p.
2BBC
Brasil, 20 de setembro de 2013, Uma cronologia da mudança
climática no mundo.
3Rockström,
Johan, Steffen, W., Noone, K., Persson, Å., Chapin III, F. S.,
Lambin, E., Lenton, T. M., Scheffer, M., Folke, C., Schellnhuber, H.
J., Nykvist, B., de Wit, C. A., Hughes, T., van der Leeuw, S., Rodhe,
H., Sörlin, S., Snyder, P. K., Costanza, R., Svedin, U., Falkenmark,
M., Karlberg, L., CorellR. W., Fabry, V. J., Hansen, J., Walker, B.,
Liverman, D., Richardson, K., Crutzen, P. & Foley , J. 2009.
Planetary boundaries: exploring the safe operating space for
humanity. Ecology and society, v. 14, n. 2., art. 32.
4Correio
do Povo. Porto Alegre, Terça-Feira, 25 de Setembro de 2018, Ano
123, Nº 360.
5Josélia
Pegorim. Primavera começa com chuva no Brasil. ClimaTempo,
22/09/2017 às 14:32.
6Cai,
W., Borlace, S., Lengaigne, M., van Rensch, P., Collins, M., Vecchi,
G., Timmermann, A., Santoso, A., McPhaden, M. J., Wu, L., England, M.
H., Wang, G., Guilyardi, E. & Jin, F.-F. 2017. Continued increase
of extreme El Niño frequency long after 1.5°C warming
stabilization. Nature Climate Change, v. 7, n. 8, p. 568-572.
7Raworth,
Kate. 2013. Defining a Safe and Just Space for Humanity. In:
Worldwatch Institute (eds) State of the World 2013. Island Press,
Washington, DC.
8Steffen,
Will, Richardson, K.,
Rockström, J.,
Cornell, S.
E.,
Fetzer, I.,
Bennett E.
M.,
Biggs, R.,
Carpenter, S.
R.,
de Vries, W.,
de Wit, C.
A.,
Folke C.,
Gerten, D.,
Heinke, J.,
Mace, G.
M.,
Persson, L.
M.,
Ramanathan, V.,
Reyers, B.,
Sörlin, S.
2015.
Planetary boundaries: Guiding human development on a changing planet.
Science, v.
347,
n.
6223,
art.
1259855.
Leitura Recomendada
Raworth,
Kate. 2012. Um espaço seguro e justo para a humanidade. Podemos
viver dentro de um “donut”? Oxford, United Kingdom: Oxfam GB.