27 de nov. de 2018

A Marcha da Insustentabilidade

Fonte da imagem: Global Roundtableissues
Há alguns dias li a coluna do Juremir Machado da Silva, do dia 23/11/2018 (Correio do Povo): “Tudo se recicla, até a ideologia?”1. O texto do Juremir deste dia me instigou mais que o normal porque se sobrepôs à minha área de interesse: “sustentabilidade”.
O texto de Juremir Machado traz implícito um tema raro na mídia, mas de grande relevância: a eficiência dos processos humanos, que é pertinente e bem ajustado ao momento em que vivemos. No texto ele cita uma matéria do “Libération”, um jornal diário de Paris, França, “Urina, mina de ouro ignorada” (L'urine, cette mine d’or qui s'ignore), de Margaux Lacroux2. O subtítulo do texto menciona algo já bem conhecido pela ciência há bastante tempo, mas incompreensivelmente ignorado por autoridades gestoras ligadas ao saneamento e gestão pública: “cocô” e “xixi” humanos podem ser um recurso importante para produzir adubo para a produção de alimento (Fig. 1).
Figura 1. Representação da quantidade de matéria orgânica (DQO) e nutrientes (N, P, K) presentes nos diversos tipos de segregação realizada no esgoto sanitário. (Fonte: Kujawa-Roeleveld & Zeeman, 2006, in Gonçalves, 20063)
Além disso, o processo biológico usado para converter esgoto em matéria orgânica nutritiva para a lavoura gera o biogás, que pode ser usado para produzir energia (a Fig. 2 ). Assim, o que antes seria rejeito, subproduto e poluiria o meio ambiente e a natureza, pode ser fonte de riquezas importantes e cada vez mais escassas. Noutras palavras, se ganharia muito em eficiência para o (eco)sistema humano.
 Estação de Tratamento de Esgoto (ETE) Ribeirão Preto, primeiro sistema de produção em alta escala de geração de energia elétrica por meio do biogás implantado pela Ambient, concessionária de serviços de saneamento do município de Ribeirão Preto (SP) responsável pelo projeto, construção, operação e manutenção das duas estações do município. (Fonte da imagem: Ambient).
Se pensarmos no que a ciência vem revelando sobre a questão dos processos planetários, o aproveitamento de nossos resíduos seria um ganho significativo para o planeta e a sustentabilidade humana. Num esforço conjunto de centenas de cientistas pelo mundo, um estudo abrangente identificou 9 fronteiras planetárias4. Cada fronteira representa um processo fundamental para a manutenção das condições ambientais do planeta. Destas, 3 foram transgredidas pelo homem segundo os resultados da primeira publicação em 2009: perda de biodiversidade, mudanças climáticas e o ciclo do nitrogênio4. E numa atualização do estudo publicada em 20155, em função do aprofundamento da poluição ambiental e de avanços e refinamentos técnicos nos estudos, também foram detectados como transgredidos as mudança do sistema terrestre (uso e ocupação do solo) e no ciclo do fósforo (Fig. 3).
Figura 3. As 9 fronteiras planetárias5. As áreas verdes representam o espaço de operação seguro  para a humanidade. As áreas amarelas representam a zona de incerteza, onde os riscos aumentam. As áreas vermelhas representam a zona de alto risco, para além da zona de incerteza. Para algumas fronteiras faltam dados ou estudos que permitam estabelecer o status atual. (Fonte da imagem: Lewandowski et al., 20186).
O que isso significa? Que estamos empurrando o planeta (e a humanidade junto) para uma zona desconhecida e perigosa, que poderá ser desfavorável ou até inóspita para a prosperidade humana. Mais ainda. Existem fortes evidências de que manter o planeta e a humanidade dentro das fronteiras planetárias implica em fazer justiça social, pois os extremos da escala de prosperidade humana (os muito pobres e os muito ricos) são fatores de desequilíbrio ambiental e ecológico para o planeta.
Por exemplo, de acordo com publicação da economista e cientista Kate Raworth7, cerca de 11% da população é responsável por cerca de 50% das emissões de carbono no mundo, enquanto que seria necessário aumentar as emissões globais de CO2 em apenas 1% para fornecer energia para os 19% de pessoas que ainda não tem acesso à energia. Ou seja, se os 11% com maior acesso abrissem mão ou reduzissem suas emissões em 1% – o que seria um pequeno esforço para eles –, contribuiriam para dar um grande passo na redução da pobreza. Por isso, numa abordagem inovadora Kate Raworth propôs um modelo rosquinha (donut) para definir o espaço seguro e justo para a humanidade (Fig. 4).
Figura 4. Um espaço seguro e justo para humanidade. As 11 dimensões da base social são ilustrativas no centro do “donut”, e estão baseadas nas prioridades dos governos baseados na Rio+207. Os 9 limites ambientais máximos estão baseados nas fronteiras planetárias propostos por Rockstön et al (2009)4.
É claro que esse é só um exemplo. A questão da prosperidade humana no planeta é bem mais complexa, e está em profundo conflito com os rumos políticos do planeta -- e do Brasil em especial. Enquanto a ciência nos diz que precisamos melhorar a distribuição do acesso aos recursos naturais e a eficiência no uso desses recursos, as forças governamentais dominantes no planeta hoje visam a disputa e a hegemonia no acesso aos recursos do planeta. E o mesmo se reproduz em escalas menores, como entre estados, municípios e entre diferentes estratos sociais. Não se trata portanto apenas de uma questão técnica sobre a eficiência dos processos. O problema engloba a forma como toda a sociedade tem se organizado ao longo dos séculos.
A lição do “cocô” e “xixi”  estimulada pelo texto do Juremir também se reflete no conteúdo veiculado na imprensa e na mídia em geral. O próprio texto do Juremir é uma exceção afortunada. E espero que esse tipo de interesse por parte dos profissionais da imprensa contamine e se multiplique, pois enquanto mergulhamos fundo na grande guerra política e ideológica mundial, não percebemos que marchamos em direção ao abismo da insustentabilidade humana no planeta.

Referências

1 Juremir Machado. 2018. Tudo se Recicla, Até a Ideologia? Correio do Povo, 23 de novembro de 2018. Acessado em: 24/11/2018. Disponível em: http://www.correiodopovo.com.br/blogs/juremirmachado/2018/11/11361/tudo-se-recicla-ate-a-ideologia/
2 Margaux Lacroux. 2018. L'urine, cette mine d’or qui s'ignore. Libération, 17 novembre 2018 à 15:26. Acessado em: 26/11/2018. Disponpivel em: https://www.liberation.fr/france/2018/11/17/l-urine-cette-mine-d-or-qui-s-ignore_1692065
Gonçalves, R. F. (Coord.). 2006. Uso racional da água em edificações. Rio de Janeiro: ABES, v. 5, p. 352.
4 Rockström, J., Steffen, W., Noone, K., Persson, Å., Chapin, F. S. III, Lambin, E., Lenton, T. m., Scheffer, M., Folke, C., Schellnhuber, H. J., Nykvist, B., Wit, C. A. de, Hughes, T., van der Leeuw, S., Rodhe, H., Sörlin, S., Snyder, P. K., Costanza, R., Svedin, U., Falkenmark, M., Karlberg, L., Corell, R. W., Fabry, V. J., Hansen, J., Walker, B., Liverman, D., Richardson, K., Crutzen, P. & Foley, J. 2009. Planetary boundaries: exploring the safe operating space for humanity. Ecology and society, v. 14, n. 2.
5 Steffen, W., Richardson, K., Rockström, J., Cornell, S. E., Fetzer, I., Bennett, E. M., Biggs, R., Carpenter, S. R., de Vries, W., de Wit, C. A., Folke, C., Gerten, D., Heinke, J., Mace, G. M., Persson, L. M., Ramanathan, V., Reyers, B. & Sörlin, S. Planetary boundaries: Guiding human development on a changing planet. Science, v. 347, n. 6223, p. 1259855, 2015.
Lewandowski, I., Gaudet, N., Lask, J., Maier, J., Tchouga, B., & Vargas-Carpintero, R. 2018. ContextIn: Bioeconomy. Springer, Cham, p. 5-16.
7 Raworth, Kate. A safe and just space for humanity: can we live within the doughnut. Oxfam Policy and Practice: Climate Change and Resilience, v. 8, n. 1, p. 1-26, 2012.
Veloso, S. & Esteves, P. (Coord.). 2015. Direito à Cidade para Um Mundo Justo e Seguro: O Caso do Brics. 1ª Ed. Rio de Janeiro, RJ: BRICS Policy Center / Centro de Estudos e Pesquisas BRICS, 173p.