31 de mar. de 2015

Mar de Estrogênios: Poluição Invisível

Petúnia nativa (Ipomoea cf. cairica− (Rio Pardo, RS)
Foto: Leon Maximiliano Rodrigues

Um artigo de 2015, publicado na revista Human Reproduction, trata de um estudo recentes que mostram uma relação do consumo de alimentos com pesticidas e a redução na produção e qualidade do esperma em homens (Chiu et al., 2015). No mesmo ano o estudo ganhou destaque em diferentes sites de notícias na internet. A revelação é surpreendente, mas preocupante por dois motivos distintos. Primeiro porque nos alerta sobre um problema grave de saúde humana. Segundo porque a ciência já sabe disso há décadas.



Os primeiros estudos sobre o tema surgem na década de 1980. No início da década começa a ficar evidente que os agrotóxicos não afetam somente os organismos-alvo considerados "pragas" (e.g., Ware, 1980). Ainda em meados da primeira metade dos anos 1980 são publicadas as primeiras evidências científicas da relação dos agrotóxicos com a saúde humana, com foco especial em agricultores, usuários diretos de agroquímicos (e.g., Moses, 1989; Sharp et al., 1986). Ainda no final da mesma década e início da década seguinte (1990), emergem as primeiras evidências da relação dos agrotóxicos com a fertilidade humana (e.g., Donat et al., 1990; Strohmer et al., 1993).

E o tema reaparece na literatura esporadicamente desde então (e.g., Sánchez-Peña et al., 2004). Entretanto, este era um problema que se destacava mais pelas implicâncias óbvias que carrega. Contudo, os efeitos na fertilidade é um aspecto que compõe um problema mais complexo: a desmasculinização do homem (e.g., LeBlanc et al., 1997) e outras disfunções menos evidentes em mulheres (e.g., Wills et al., 1993), além do câncer (e.g., Zahm et al., 1993).

A descoberta da relação dos pesticidas com a fertilidade do homem aconteceu, portanto, no início da década de 1980. E resultou da convergência de estudos em diferentes áreas da biologia e das ciências médicas, que convergiram para um problema comum: a relação não só de pesticidas, mas de uma infinidade de substâncias residuais e subprodutos industriais, que passaram a fazer parte do dia-a-dia das pessoas, com a diminuição da fertilidade masculina e o aumento da ocorrência de doenças sistêmicas e relacionadas aos órgãos sexuais. Essa descoberta e o desenvolvimento inicial do conhecimento sobre o problema pode ser visto num documentário de cerca de 36 minutos, editado no início da década de 1980 na Inglaterra, intitulado “Agressão ao Homem − A Feminização do Macho” (ver link abaixo). O vídeo permite ter uma noção clara do problema ― recomendo fortemente assistir.

Cena do vídeo "Agressão ao Homem" na qual um elecóptero aplica DDT em um lavoura.

Curiosamente esse vídeo nunca foi divulgado no Brasil, e provavelmente nunca foi assistido além de um círculo muito restrito de interessados. Eu tive contato com esse material no início da década de 2000, quando assisti a uma palestra sobre o assunto, proferida por Luiz Jacques Saldanha, na época funcionário da SEMA (Sec. de Meio Ambiente de Porto Alegre, RS). Na ocasião, a palestra foi aberta com o documentário citado acima seguido por uma apresentação sobre o que havia sido descoberto até aquele momento a partir da publicação do vídeo. Foi chocante me deparar com aquelas informações. Mas, mais impressionante ainda foi saber que tudo aquilo estava acontecendo e ninguém sabia, ninguém fazia nada a respeito. Mais informações sobre o tema podem ser encontradas no sítio “Nosso Futuro Roubado”, criado e mantido pelo mesmo Luiz Jacques Saldanha e colegas (ver link abaixo).

Sítio: Nosso Futuro Roubado. Link: http://www.nossofuturoroubado.com.br/quem_somos.html

Essa defasagem na difusão de um tema importante pelas mídias em diferentes níveis é uma das preocupação do nosso blog (Journal Explorator), pois pode impedir ou prejudicar o uso da ciência como feramenta para o desenvolvimento da sociedade em qualquer área da vida humana, como no caso do tema desse texto: “saúde humana”. A gestão de problemas reais e importantes não pode esperar “décadas” pela transformação da informação gerada pela ciência em informação pública pela mídia e outros mecanismos. Além disso, até que o conhecimento científico se transforme em "herança cultural", ou seja, passe a fazer parte da caixa de ferramentas da sociedade, leva certo tempo.

A divulgação de conhecimentos é fundamental para a tomada de consciência pela sociedade. E é essa tomada de consciência que leva as pessoas a adquirir ciência sobre determinado problema e reivindicar soluções, podendo muitas vezes desencadear mudanças profundas no modus operandi da sociedade.

Por outro lado, não me surpreende os mecanismos de comunicação serem tão defasados ao tratar determinados assuntos. O foco de interesse da mídia é tão restrito ― restrito aos temas de interesse e à audiência ― que parece não haver uma responsabilidade com seu próprio papel na sociedade e na história.

A própria questão dos agrotóxicos é antiga, e já gerava polêmica nos setores interessados devido aos efeitos de venenos como DDT em humanos e animais silvestres. O livro “Primavera Silenciosa” (Silent Spring), da bióloga e escritora Rachel Louise Carson já tratava, em 1962 (ano da 1ª edição; Carson, 1962), sobre os impactos do uso de DDT, alertando para os perigos dos agrotóxicos. Contudo, de lá para cá, apesar do banimento do DDT e outros agrotóxicos, muitos outros surgiram e são usados em grande abundância na agricultura, sendo esta uma questão polêmica e mal resolvida até hoje.

Livro: primavera Silenciosa. Link: https://biowit.files.wordpress.com/2010/11/primavera_silenciosa_-_rachel_carson_-_pt.pdf

Nesse contexto, o avanço da industrialização da sociedade chegou a tal ponto que é praticamente impossível viver livre dessas substâncias. De fato vivemos imersos num mar de estrógenos (hormônios femininos) artificiais formados por substâncias químicas sintéticas encontradas em diversos produtos, como plásticos, agroquímicos, remédios, revestimentos de latas, conservantes de alimentos, produtos de limpeza, cosméticos, etc. O livro “O Futuro Roubado” (Our Stolen Future), de Theo Colborn (Theodorine Colborn), professora da Universidade da Flórida (EUA), discute em detalhe o problema (link para o livro em ‘.pdf’ abaixo).


Dada a dimensão e complexidade do problema, esse pode ser um dos maiores problemas ambientais da história, e praticamente (quase) ninguém sabe nada a respeito. Obviamente há grande interesse das corporações industriais/econômicas em gerir o problema. Não seria surpresa se houvesse algum tipo de desinformação organizada ou estimulada pelos setores de poder da economia, já que tais substâncias derivam de processos de indústrias como as do petróleo, medicamentos e alimentos, só para citar as mais importantes. Por essas e outras razões, o problema pode ser muito mais de gestão da informação e educação que de conhecimento técnico e tecnológico.

Referências

Carson, R. 1962. Silent Spring. Boston, MA: Houghton Mifflin, 359p.
Chiu, Y. H., Afeiche, M. C., Gaskins, A. J., Williams, P. L., Petrozza, J. C., Tanrikut, C., Hauser, R. & Chavarro, J. E. 2015. Fruit and vegetable intake and their pesticide residues in relation to semen quality among men from a fertility clinic. Human Reproduction, v. 30, n. 6, p. 1342–1351.
Donat, H., Matthies, J., & Schwarz, I. 1990. Fertility of workmen exposed to herbicide and pesticide. Andrologia, v. 22, n. 5, p. 401–407.
LeBlanc, G. A., Bain, L. J. & Wilson, V. S. 1997. Pesticides: multiple mechanisms of demasculinization. Molecular and cellular endocrinology, v. 126, n. 1, p. 1-5.
Moses, M. 1989. Pesticide-Related Health Problems and Fannworkers. AAOHN Journal, v. 37, n. 3, p. 115–130.
Sánchez-Peña, L. C., Reyes, B. E., López-Carrillo, L., Recio, R., Morán-Martínez, J., Cebrián, M. E., & Quintanilla-Vega, B. 2004. Organophosphorous pesticide exposure alters sperm chromatin structure in Mexican agricultural workers. Toxicology and Applied Pharmacology, v. 196, n. 1, p. 108–113.
Sharp, D. S., Eskenazi, B., Harrison, R., Callas, P. & Smith, A. H. 1986. Delayed health hazards of pesticide exposure. Annual Review of Public Health, v. 7, p. 441–471.
Strohmer, H., Boldizsar, A., Plöckinger, B., Feldner-Busztin, M., & Feichtinger, W. 1993. Agricultural Work and Male Infertility. American Journal of Industrial Medicine, v. 24, n. 5, p. 587–492.
Ware, G. W. 1980. Effects of pesticides on nontarget organisms. In: Gunther, F. A. & Gunther, J. D. (Eds.), Residue Reviews. Springer, New York, NY, v. 76, p. 173–201.
Wills, W. O., de Peyster, A., Molgaard, C. A., Walker, C. & Mackendrick, T. 1993. Pregnancy Outcome Among Women Exposed to Pesticides through Work or Residence in an Agricultural Area. Journal of Occupational and Environmental Medicine, v. 35, n. 9, p. 943–949.
Zahm, S. H., Weisenburger, D. D., Saal, R. C., Vaucht, J. B., Babbitt, P. A., & Blair, A. 1993. The role of agricultural pesticide use in the development of non-hodgkins lymphoma in women. Archives of Environmental Health, v. 48, n. 5, p. 353–358.

24 de mar. de 2015

Política, Qualidade de Vida e a Teia da Aranha

Foz do Rio Pardo no rio Jacuí (Rio Pardo, RS) durante pulso de inundação no inverno de 2014.
Foto: Leon M. Rodrigues

Não é de hoje que a classe política faz ‘vista grossa’ às informações geradas pela ciência ao tomar decisões. A qualidade ambiental (e, consequentemente, nós) tem sido profundamente afetado por essa negligência. Para citar alguns exemplos nas últimas décadas, temos a perda de diversidade genética dos alimentos devido à introdução e ‘variedades de laboratório’ (híbridos, transgênicos, etc.) na agricultura ao longo das décadas. A questão os recursos hídricos, que vem se agravando ao longo das décadas e dando recentemente fortes sinais com a crise na região metropolitana e São Paulo, é debatia amplamente no meio científico. A gravidade do problema já é bem compreendida no meio acadêmico há muito tempo. Mas apesar e todo conhecimento e divulgação, parece que o meio político não consegue perceber o que está à sua frente. E talvez a crise recente não seja apenas uma crise, mas o agravamento de um problema crônico que tende a se agravar cada vez mais, como sugere o texto de Lamin-Guedes (2015).

As florestas também vêm sofrendo com a ignorância ambiental da classe política, especialmente com a recente aprovação do novo Código Florestal. Diversos estudos científicos comprovam que as faixas protegidas como “Áreas de Preservação Permanente” (APPs), como margens de rios, topos de morros, etc., devem ser mais largas do que determina o atual Código Florestal (Lima et al., 2014). É importante entender que a extensão das áreas protegidas tem relação com a ‘área e vida’ das espécies que vivem nelas. Ou seja, se a extensão da área protegida precisa ser compatível com a área e vida de uma espécie (p.ex., Martín, 2008; Longepierre et al.; 2001; Doak & Mills, 1994). Do contrário está não conseguirá sobreviver.

Além disso, as APPs não servem somente para proteger as espécies que vivem nelas, mas servem para proteger os recursos hídricos, já tão ameaçados, como discutido acima. As florestas de margens de rios os protegem da erosão e assoreamento e são um importante filtro de poluentes. Também contribuem para a cadeia alimentar das espécies aquáticas. Na verdade existe uma grande dependência das espécies aquáticas em relação aos ecossistemas terrestres adjascentes (p.ex., Jones et al. 1999). E com relação às florestas e topos e morros, sua importância, além das já mencionadas, elas protegem as diversas pequenas nascentes que alimentam os granes mananciais.

Assim, é possível perceber com alguns exemplos polêmicos conhecidos que existe uma conexão entre os diferentes componentes da natureza, incluindo o ser humano, que acaba sofrendo as consequências. Se rompermos uma ponta da teia, toda sua estrutura é alterada, tal como a “teia da aranha”. A questão é: Como fazer para os tomadores de decisões perceberem os problemas ambientais e a importância de resolvê-los? Também deve ser feita as seguintes perguntas: Há interesse em resolver o problema ambiental e da qualidade de vida ou há outros interesses mais fortes? Há interesse em manter o status quo para a manutenção de tais interesses?

Acredito que tudo é uma questão de percepção, e que esta percepção é determinada pelo conhecimento de cada um. A ignorância ou falta de ciência sobre as coisas impede uma percepção clara da realidade e leva a atitudes equivocadas. Um os primeiros passos para tratar a ignorância é a alfabetização. Por isso podemos dizer que para tratar a ignorância ambiental, precisamos de “alfabetização ambiental” ou “alfabetização ecológica”, dependendo do autor. Porém, esse não é um problema que afeta somente as famílias de baixa renda. Parece ser um problema que independe de renda, pois vemos a mais alta ignorância (e arrogância) ambiental tanto entre os mais pobres como entre os mais ricos. Assim, talvez a cultura e a educação sejam o nó mais problemático da ‘teia ambiental’.

O contexto sociopolítico atual exemplifica bem a ignorância ambiental no caso do Brasil. Enquanto falamos de economia, soberania, corrupção, PIB, eleição, etc., a educação parece sempre ficar de lado. A educação é o processo pelo qual o conhecimento científico, já mencionado, é transformado em conhecimento cultural e passa a fazer parte do ideário e modus operandi das pessoas. O estudo de Miranda et al. (2010) exemplifica bem esse processo. Com boa educação, o povo vota melhor, os políticos decidem melhor, a sociedade se organiza melhor... O problema é que os efeitos da educação só se sentem a longo prazo, quando as gerações futuras estiverem à frente da sociedade, votando, trabalhando e fazendo política.

Por isso, a mais potente e importante ferramenta para transformar a sociedade é a educação. Sem ela, tudo continuará como sempre esteve, incluindo a política e a economia que, apesar de mudarem os protagonistas, se mantém através dos mesmos modelos. Nas últimas décadas, por exemplo, a desigualdade social e a pobreza vêm diminuindo no Brasil, o que é um avanço do ponto de vista social. Mas, apesar de amenizadas, as relações sociais e de trabalho continuam essencialmente as mesmas. As mudanças necessárias para o estabelecimento de um modelo que sustente a qualidade de vida não virão de um regime de governo ou projeto político, mas sim da educação. O projeto de governo é fundamental, mas o governo pode e deve contribuir valorizando e estimulando o processo educacional para estabeleçamos conexões fortes e duradouras na ‘teia ambiental’.


Bibliografia

Doak, D. F. & Mills, L. S. A useful role for theory in conservation. Ecology, v. 75, n. 3, p. 615-626, 1994. Disponível em: http://www.researchgate.net/profile/L_Mills/publication/230693610_A_useful_role_for_theory_in_conservation/links/5491893c0cf214269f29f7bf.pdf
Jones, E. B., helfman, G. S., harper, J. O. & Bolstad, P. V. 1999. Effects of riparian forest removal on fish assemblages in southern Appalachian streams. Conservation Biology, v. 13, n. 6, p. 1454-1465. Disponível em: http://littletnwi.org/wp-content/uploads/2014/04/j.1523-1739.1999.98172.x.pdf
Lima, A., Bensusan, N. & Russ, L. 2014. Código Florestal. Por um debate pautado em ciência. Brasília, IPAM, 75p. Disponível em: http://www.ipam.org.br/biblioteca/livro/Estudo-do-Ipam-mergulha-na-producao-cientifica-existente-para-entender-importancia-das-florestas/761
Longepierre, S., Hailey, A. & Grenot, C. 2001. Home range area in the tortoise Testudo hermanni in relation to habitat complexity: implications for conservation of biodiversity. Biodiversity & Conservation, v. 10, n. 7, p. 1131-1140. Disponível em (resumo): http://link.springer.com/article/10.1023/A:1016611030406
Martín, J. L. 2009. Are the IUCN standard home-range thresholds for species a good indicator to prioritise conservation urgency in small islands? A case study in the Canary Islands (Spain). Journal for Nature Conservation, v. 17, n. 2, p. 87-98. Disponível em: http://www.researchgate.net/profile/Jose_Martin19/publication/258225119_Are_the_IUCN_standard_home-range_thresholds_for_species_a_good_indicator_to_prioritise_conservation_urgency_in_small_islands_A_case_study_in_the_Canary_Islands_(Spain)/links/00b7d52775bfdc3d72000000.pdf
Miranda, A. C. de B., Jófili, Z. M. S., Leão, A. M. dos A. C., & Lins, M. 2010. Alfabetização ecológica e formação de conceitos na educação infantil por meio de atividades lúdicas. Investigações em Ensino de Ciências, v. 15, n. 1, p. 181-200. Disponível em: http://www.if.ufrgs.br/ienci/artigos/Artigo_ID233/v15_n1_a2010.pdf

Ciberografia

Alisson, E. 2013. Perda da biodiversidade é problema global. Planeta Sustentável − Ambiente. Disponível em: http://planetasustentavel.abril.com.br/noticia/ambiente/perda-biodiversidade-problema-global-747037.shtml
IPAM. 2015. Estudo conclui que debate sobre código florestal ignorou produção científica existente. IPAM – Instituto de Pesquisa Ambiental da Amazônia. Dispónível em: http://www.ipam.org.br/noticias/Estudo-do-Ipam-conclui-que-debate-sobre-codigo-florestal-ignorou-producao-cientifica-existente/3230/destaque

Lamin-Guedes, V. 2015. Crise da água na região metropolitana de São Paulo, Brasil. Global Education Magazine. Disponível em: http://www.globaleducationmagazine.com/crise-da-agua-na-regiao-metropolitana-de-sao-paulo-brasil/