10 de set. de 2019

O que as Duas Grandes Guerras Mundiais Têm em Comum com o Período Atual?


Fronteiras planetárias. Dentro do círculo pontilhado encontra-se o espaço seguro para humanidade. (Crédito: J. Lokrantz/Azote, baseado em Steffen et al., 2015)

O cenário mundial tem preocupado autoridades de diferentes tendências. Dentre algumas questões críticas que tem despertado a atenção podemos citar:

  • o crescimento inexorável dos gastos militares;
  • democracias em transição para estados policiais cada vez mais autoritários;
  • aumento das tensões geopolíticas entre grandes potências;
  • ressurgimento do populismo à esquerda e à direita;
  • o colapso e o enfraquecimento de instituições globais estabelecidas que governam o capitalismo transnacional; e
  • o implacável aumento das desigualdades globais.

Todas estas questões são motivos de preocupação e alerta, e descrevem bem o período em que estamos vivendo. No entanto, estes são sintomas que antecederam as duas grandes guerras mundiais (Hanappi, 2019).

Não podemos afirmar categoricamente que estamos nos encaminhando para uma terceira guerra mundial ou algo do tipo. Contudo, não podemos ignorar que a conjuntura é cada vez mais favorável a isso. Eu acrescentaria ainda aos sintomas listados acima a forma como a população em geral caminha na direção do desastre ditada pelos acontecimentos, conduzidas pelo "efeito de manada". Seguem a multidão sem perceber no que estão engajados, sem perceber que estão contribuindo para reforçar a conjuntura descrita acima.

Mas, então, no que o cenário atual difere daqueles que antecederam as duas grandes guerras? Nas palavras do Prof. Johan Rockström, do Centro de Resiliência de Estocolmo (Suécia), no passado “éramos um um pequeno mundo num grande planeta”. Hoje “somos um grande mundo num pequeno planeta” (Rockström et al., 2015). O que quero dizer é que talvez nosso planeta não possua capacidade para absorver o impacto de mais uma grande guerra e se manter dentro dos seus limites de resiliência.

Já estamos transitando por estes limites (Steffen et al., 2015). Soma-se a isso o fato de que uma terceira grande guerra seria potencialmente muito mais devastadora do que as que a antecederam, pois hoje as forças armadas do planeta são muito maiores e mais potentes, com alcance e potência tecnológica e bélica mito maiores. Não precisaríamos de armas nucleares para uma catástrofe global.

E num mundo cada vez mais e mais conectado, onde tudo é cada vez mais intenso e rápido, precisamos considerar que vivemos numa realidade que permite o surgimento de crises acopladas no tempo e no espaço, com potencial sem precedentes para a propagação de crises e um risco aumentado de que intervenções gerenciais em uma região se tornem impulsionadoras de crises em outros lugares devido ao aumento da conectividade (Biggs et al., 2011).

Por isso, uma terceira grande guerra não é desejável  se é que alguma guerra é desejável.  Uma guerra de grandes proporções poderia dar o impulso final para ultrapassarmos as fronteiras da sustentabilidade do planeta de maneira irreversível. Poderia levar o planeta e a civilização literalmente ao colapso.

No entanto, qualquer prognóstico seria ousado demais e imprudente, dado o grau de complexidade e imprevisibilidade com o qual lidamos nesse tipo de questão. Mas, ignorar as possibilidades seria mais imprudente ainda. Há muito em jogo...

Mas há algo inquestionável no horizonte. O oposto da intolerância e hostilidade de um cenário de guerra é a democracia. Precisamos nos perguntar e às nossas autoridades em que direção seguir.


Referências


Biggs, D., Biggs, R., Dakos, V., Scholes, R. J. & Schoon, M. 2011. Are we entering an era of concatenated global crises? Ecology and Society, 16(2): 27.
Rockström, J., Klum, M., & Miller, P. 2015. Big World, Small Planet: Abundance within Planetary Boundaries. New Haven: Yale University Press, 206p.
Rockström, J., Steffen, W., Noone, K., Persson, Å., Chapin III, F. S., Lambin, E. F., Lenton, T. M., Scheffer, M., Folke, C., Schellnhuber, H. J., Nykvist, B., de Wit, C. A., Hughes, T., van der Leeuw, S., Rodhe, H., Sörlin, S., Snyder, P. K., Costanza, R., Svedin, U., Falkenmark, M., Karlberg, L., Corell, R. W., Fabry, V. J., Hansen, J., Walker, B., Liverman, D., Richardson, K., Crutzen, P. & Foley, J. A. 2009. A safe operating space for humanity. Nature, 461(7263): 472–475.
Steffen, W., Richardson, K., Rockström, J., Corell, S. E., Fetzer, I., Bennett, E. M., Biggs, R., Carpenter, S. R., de Vries, W., de Wit, C. A., Folke, C., Gerten, D., Heinke, J., Mace, G. M., Persson, L. M., Ramanathan, V., Reyers, B. & Sörlin, S. 2015. Planetary boundaries: guiding human development on a changing planet. Science, 347(6223):1259855.

8 de set. de 2019

O que Falta para Enchergarmos?

Cientistas tentaram calcular os benefícios que os insetos produzem. Trilhões deles polinizam cerca de três quartos de nossas colheitas, serviço que chega a valer 500 bilhões de dólares por ano. E esse é apenas um dos incontáveis e insuspeitos serviços oferecidos pelos insetos e pela biodiversidade do planeta (Crédito da imagem: MATT DORFMAN_BRIDGEMAN IMAGES; Fonte: Jarvis, 2019).
Olhamos mas não vemos. Ouvimos falar, mas não entendemos. O que realmente significam as mudanças globais sobre as quais ouvimos tanto falar nas mídias?

A Ciência está perplexa com o que está acontecendo com o planeta. Não podíamos imaginar que éramos capazes de tamanho feito. Causar a "sexta extinção em massa" parecia um feito tão grande que só uma catástrofe cósmica, como no provável evento da extinção dos dinossauros, podia fazê-lo.

No entanto, mostramos sermos capazes de ir bem além. Não só estamos causando uma grande extinção em massa, como estamos moldando a face do planeta Terra de uma forma que supera todas as outras forças naturais que talharam a superfície do planeta por toda a história da vida na Terra.

O que mais espanta nesse processo é a velocidade com que estamos fazendo isso. Mudanças nos ecossistemas e na biosfera são medidas em escalas de milhares ou milhões de anos. A humanidade está conseguindo fazer uma mudança completa no planeta em apenas alguns séculos. Mas, se considerarmos apenas as últimas 5 ou 6 décadas, é possível constatar uma transformação na superfície do planeta sem precedentes na história natural da Terra.

No entanto, o que falta para que a sociedade como um todo, e as autoridades em particular, consigam perceber e reagir ao que está acontecendo? Kevin Gaston (ver texto do link), professor de biodiversidade e conservação da Universidade de Exeter (Inglaterra) nos dá uma pista: “Os seres humanos parecem ter uma melhor capacidade inata de detectar a perda completa de uma característica do meio ambiente do que de notar sua mudança progressiva.”

Talvez as pessoas mais velhas percebam que algo mudou. Que já não vemos tantos vagalumes à noite, ou que já não vemos tantos insetos voando entorno das luzes dos postes à noite. Ou ainda que já não pescamos peixes tão grandes e em abundância como antes, precisando nos contentar com espécies menores que antes eram despresadas nas pescas de fim de semana. Contudo, as gerações mais novas não percebem isso porque já nasceram e cresceram num mundo com menos insetos, peixes e outros seres vivos. Assim, as mudanças graduais na biosfera não são percebidas de uma geração para outra. E temos a sensação de que tudo continua normal.

O ecólogo (e não 'ecologista', como coloca o tradutor do texto de Brooke Jarvis) Brad Lister, especialista nos trópicos reforça essa percepção, como mostra o texto de Jarvis (ver link):  "Na última visita feita a floresta seguia 'atemporal' e 'fantasmagórica', com 'suas cascatas e tapetes de flores'. Só um especialista notaria que faltava algo ali. ... as perdas conduzirão a floresta a um ponto crítico, depois do qual 'haverá uma perda dramática do sistema da floresta tropical', e as mudanças se tornarão óbvias para qualquer um. O lugar que ele tanto ama se tornará irreconhecível."

O texto (ou a tradução) comete um pequeno erro. A sexta extinção em massa não é "a sexta vez na história da humanidade", mas a sexta vez na história do planeta. Porém o erro não diminui a dimensão do problema. Certamente algumas espécies sobreviverão ao processo de extinção em massa, como sempre aconteceu. E provavelmente o ser humano estará entre elas. Mas, sobreviver não é o suficiente. Precisamos viver e prosperar. Entretanto, tudo indica que não teremos garantia de que isso será possível. Como Jarvis coloca em seu texto, "consolar-se com a sobrevivência de uns poucos animais simbólicos é ignorar o valor da abundância, de um mundo natural que prospera com base na riqueza, na complexidade e na interação".

Sem a abundância e diversidade de espécies, a Biosfera perde sua capacidade de autorregulação, de auto-organização e de manutenção da estabilidade climática e tantos outros serviço que oferece para a sociedade, permitindo à humanidade prosperar.

A mudança que estamos impondo ao planeta já transgrediu alguns limites importantes, reconhecidamente a da perda de biodiversidade, das mudanças do clima e do ciclo do nitrogênio (Rockström et al., 2009; Steffen et al., 2015). Um estudo publicado em 2018 nos 'Proceedings of the National Academy of Sciences' mostra que a biomassa ou peso dos mamíferos é de 96% composto de humanos e de animais de criação (domésticos); apenas 4% são de animais selvagens. Somos portanto o componente animal dominante na Biosfera, seja pela influência direta ou indireta, através dos animais que criamos.

É por isso que o termo "Antropoceno", cunhado para denominar uma nova época geológica, ganha cada vez mais força e reconhecimento na comunidade científica. Já o cientista naturalista Edward O. Wilson, um dos maiores cientistas em atuação, sugere outro nome: “Eremoceno” (a era da solidão).

Mas, por que precisamos tanto preservar a Natureza e suas espécies? Um fenômeno na China, no vale do condado de Maoxian, fornece indícios de nossa dependência da biodiversidade. A escassez de insetos polinizadores naquela região exigiu a contratação de trabalhadores humanos para substituir as abelhas, a um custo diário de até 19 dólares por trabalhador. Cada pessoa faz de cinco a dez árvores por dia, polinizando manualmente flores de macieira. As abelhas e outros insetos faziam o mesmo serviço de graça e com mais eficiência.

Então, o que falta para reagirmos?... Ou melhor, o que precisamos para desencadear uma reação da humanidade à destruiçào que ela própria está causando ao sistema da Terra, do qual depende tanto? Os alertas tem sido dados regularmente pela comunidade científica e pelo movimento ambientalista. O primeiro alerta já foi dado há mais de meio século atrás, pela bióloga Rachel Carson, através de sua obra "Silent Spring" (Primavera SIlenciosa), de 1962, na qual denunciou a morte dos passaros pelos agrotóxicos, os quais recém ahvia surgido no mercado.

Referências:
Jarvis, Brooke. O Apocalipse dos Insetos. Piauí - Questões Ambientais, Ed. 151, ABRIL de 2019 (Tradução de Sergio Tellaroli)
Rockström, J., Steffen, W., Noone, K., Persson, Å., Chapin III, F. S., Lambin, E. F., Lenton, T. M., Scheffer, M., Folke, C., Schellnhuber, H. J., Nykvist, B., de Wit, C. A., Hughes, T., van der Leeuw, S., Rodhe, H., Sörlin, S., Snyder, P. K., Costanza, R., Svedin, U., Falkenmark, M., Karlberg, L., Corell, R. W., Fabry, V. J., Hansen, J., Walker, B., Liverman, D., Richardson, K., Crutzen, P. & Foley, J. A. 2009. A safe operating space for humanity. Nature, 461(7263): 472–475.
Steffen, W., Richardson, K., Rockström, J., Corell, S. E., Fetzer, I., Bennett, E. M., Biggs, R., Carpenter, S. R., de Vries, W., de Wit, C. A., Folke, C., Gerten, D., Heinke, J., Mace, G. M., Persson, L. M., Ramanathan, V., Reyers, B. & Sörlin, S. 2015. Planetary boundaries: guiding human development on a changing planet. Science, 347(6223):1259855.

3 de set. de 2019

O Dia do Biólogo e a Idade Humana

Feedbacks entre atividades humanas (área vermelha) e limites legais (faixas amarelas) em relação aos limites planetários (Terra). As fronteiras legais podem ser eficazes ao restringir atividades humanas crescentes e impedir a transgressão das fronteiras planetárias. Limites cada vez mais porosos, pelo contrário, permitirão o crescimento das atividades humanas e, eventualmente, transgredirão os limites planetários. As fronteiras mal colocadas estão mais distantes das fronteiras planetárias e são ineficazes na prevenção de sua transgressão, e podem ser constantemente empurradas ainda mais pela colisão de atividades humanas (Chapron et al., 2017)

Hoje é o "dia do biólogo". A Biologia, desde que se emancipou da História Natural, num processo histórico que iniciou em 1771, com a primeira aparição do termo (Biologie, em alemão), em um trabalho do médico e zoólogo sueco Carl Nilsson Linnæus (Carlos Lineu em português), se desenvolveu como o "estuda da vida", com foco nos seres vivos que compõem a biodiversidade contemporânea e passada.

Porém, a Biologia moderna avançou, inicialmente graças ao microscópio, mas posteriormente graças aos avanços tecnológicos, em direção á exploração da vida em escalas muito pequenas e amplamente grandes, revelando para a sociedade seres diminutos, como bactérias e vírus, e sistemas vivos em grande escala, como os ecossistemas e comunidades ecológicas.

Acima de tudo, a Biologia, através do estudo da Evolução e da Ecologia, em particular, nos mostrou que a Natureza biológica não é um amontoado de espécies vagando aleatoriamente num espaço físico qualquer. A biologia representa uma verdadeira revolução na Natureza. Os seres vivos são a contracorrente do mundo físico.

Enquanto todos os sistemas naturais (geológicos, cosmológicos. etc.) seguem à risca as leis da termodinâmica, os sistemas vivos se organizaram no caminho da sintropia, em contraposição à entropia. Promoveram a organização e conservação da energia em contraponto à tendência de desordem e dissipação da energia natural dos sistemas.

Os sistemas vivos promovem a (bio)diversidade, a heterogeneidade e a complexidade em contraste com a homogeneidade e simplificação como destino inevitável dos sistemas naturais.

Entender como a vida se organiza e evolui é uma tarefa fundamental para a manutenção da vida no planeta. A sociedade humana evoluiu sem entender como funciona o grande sistema vivo do qual faz parte, o planeta Terra. Impulsionada pelas grandes revelações da ciência newtoniana, a humanidade sempre buscou a domesticação do planeta e a simplificação dos processos à semelhança dos sistemas naturais não vivos. O resultado é que nos tornamos a principal força transformadora do planeta.

Porém, estamos conduzindo uma transformação no sistema da Terra sem consciência de suas implicâncias e consequências para a vida e o ser humano. Nossa influência no planeta é tão forte que inventamos uma nova época, o Antropoceno. O que a ciência nos diz sobre o cenário que se configura diante de nós é que estamos colocando em risco a própria prosperidade humana ao modificar e destruir os sistemas da terra que garantem a manutenção das condições de habitabilidade humana no planeta.

Se não usarmos a habilidade que ganhamos da seleção natural ― a inteligência ― de forma conciênte, em vez de deixar que ela esteja a serviço de nossos instintos mais primitivos, poderemos conduzir o sistema Terra ao colapso, perdendo definitivamente todos os serviço ecológicos que o planeta nos oferece, como a estabilidade climática, solos e águas férteis e produtivos, etc. 

Contudo, não devemos ser fatalistas. A humanidade também foi dotada pela Natureza de grande plasticidade adaptativa, que se traduz na sua grande criatividade. E nossa vontade inata de sobreviver e, mais que isso, de viver, deverá prevalecer. Ser humano e ser parte da biosfera e desse espetacular e singelo planeta é uma dádiva. Carregamos dentro de nós tudo o que precisamos para continuar nossa caminhada no planeta Terra, ou no planeta Gaia, nosso fantástico planeta vivo.

Já entendemos que o fenômeno da vida é uma singularidade ainda incompreendida no fenômeno do Cosmos. Estudá-la é uma grande tarefa. Compreendê-la é um grande desafio. Mas, é acima de tudo, um caminho para o autoconhecimento, pois somos uma das muitas expressões da vida.

Sabemos essas coisas em grande parte graças aos biólogos. Portanto, parabéns aos biólogos que dedicam a vida ao estudo e divulgação de um dos fenômenos mais extraordinários do Cosmos: "a vida".

Referência da Imagem:
Chapron, G., Epstein, Y., Trouwborst, A. & López-Bao, J. V. 2017. Bolster legal boundaries to stay within planetary boundaries. Nature Ecology & Evolution, 1(3): 86.

21 de abr. de 2019

Evolução do Preço do GLP (Gás Liquefeito de Petróleo) no Brasil e no Rio Grande do Sul de 2001 a 2019

Leon Maximiliano Rodrigues


Composição do proço do gás liquefeito de petróleo (GLP) ou, como o conhecemos popularmente, gás de coznha (Fonte: Associação dos Engenheiros da Petrobrás - AEPET).
Motivado pela discussão em torno de uma postagem sobre um recente aumento no preço do gás de cozinha, o GLP (Gás Liquefeito de Petróleo), especialmente pelo fato de que alguns internautas colocaram uma pulguinha atrás da minha orelha, resolvi ir atrás dos dados para verificar quem estava com a razão. Bom. Ter ou não ter razão não é a questão. Mas, resolver o problema é o que me motivou.
Admito que a postagem tinha um caráter tendencioso devido à minha rejeição ao atual governo federal. Mas, alguns comentários sugeriram que o aumento anunciado recentemente tinha mais a ver com a corrupção do governo anterior, algo muito propagado atualmente nas mídias mais populares.
Como sou cientista, não podia me contentar com o debate nebuloso e retórico, frequentemente baseado em evidências pontuais, típico das redes sociais. Não se trata de desmerecer os internautas. Estão no direito de opinar e devem fazer isso. Se trata, antes de qualquer coisa, de ser coerente comigo mesmo, de ser coerente com minha própria filosofia e ideologia.
Se defendo a justiça, no sentido mais amplo, não posso correr o risco de ser injusto com alguém só porque pensamos diferentes. A intolerância com as diferenças é o primeiro passo para o fascismo. A antítese da intolerância às diferenças é a valorização da diversidade. É o entendimento de que na multiplicidade de idéias reside a riqueza de possibilidades de soluções. E é no diálogo entre as diferenças que surgem os questionamentos sobre uma posição, que pode estar errada e, sem a oposição, pode acabar na zona de conforto e aceita como dogma, como verdade sem questionamento. É por isso que todos os regimes autoritários, sejam de direita ou de esquerda, sempre buscaram eliminar todos que se opuseram às idéias ditadas pelo regime.
Entretanto, diante dos fatos é sempre difícil se opor ao que eles revelam. Podemos até manipular, revelando parcialmente uma verdade ou filtrando os componentes que interessam. E isso é bastante comum em vários setores da sociedade, como na propaganda, na política, na religião, etc.
No que diz respeito à economia, há muita informação disponível na mídia. Mas, a maioria esmagadora dessa informação é oferecida ao cidadão de forma fragmentada, incompleta e/ou tendenciosa. E no caso específico do GLP, trata-se de um indicador interessante, pois mais do que a grande maioria dos produtos, é algo presente na vida quotidiana de praticamente todo mundo. Além disso, diferente de outras fontes de energia, como a elétrica, por exemplo, apresenta uma variação maior dos preços. No entanto, o que encontramo na internet e na TV são notícias sobre eventos pontuais pouco esclarecedores.
Então, achei que seria interessante verificar o que os dados de preços poderiam nos mostrar. Por isso, fui no site da ANP (Agência Nacional Petróleo, Gás Natural e Biocombustível) buscar os dados dos preços do GLP. E o que encontrei é bem interessante. No infográfico (Fig. 1) plotei as curvas temporais dos preços praticados pelo produtor (preço do produto que sai da refinaria) e os preços do produto que chega ao consumidor para o Brasil e o Rio Grande do Sul. É importante destacar que os valor correspondem a uma média. Por isso, há localidades em que os valores podem estar acima ou abaixo da curva. Além das curvas temporais dos preços, plotei em outro gráfico as linhas de tendência para cada curva (Fig. 2).
Figura 1. Variação ao longo do tempo dos preços do gás liquefeito de petróleo (GLP) praticados pelo produtor e dos preços finais ao consumidor no Brasil e no Rio Grando do Sul (Fonte dos dados: ANP).
Figura 2. Tendência temporal para o período analizado dos preços do gás liquefeito de petróleo (GLP) praticados pelo produtor e dos preços finais ao consumidor no Brasil e no Rio Grando do Sul (Fonte dos dados: ANP).  
Algumas coisas ficam claras ao olharmos para estas duas figuras. Primeiro, fica nítido que o preço para o consumidor aumentou bem mais que o preço praticado pelo produtor. Isso se deve ao fato de que o preço praticado pelo produtor depende muito do próprio produtor, neste caso o estado, que é o gestor da Petrobras e que tem sua política de preços. Por outro lado, até que o produto chegue ao consumidor passa por diversos intermediários com interesses e critérios muito particulares, envolvendo relações comerciais diversas que contribuem para a variação do preço.
Também fica claro que há mais instabilidade no preço do produto que chega ao consumidor. Isso também se deve às relações comerciais dos diversos intermediários já mencionados. E esses dois aspectos mostram como é importante o papel regulador do estado na manutenção dos preços. Os preços que chegam para o consumidor são mais afetados polos fatores do mercado que dependem menos do estado. Por isso, a diferença entre os preços quando o produto sai do produtor e quando chega ao consumidor aumenta mesmo quando o preço praticado pelo produtor se mantém inalterado (Fig. 3).
Figura 3. Variação ao longo do tempo da diferança entre o preço praticado pelo produtor e o preço ue chega ao consumidor no Brasil e no Rio Grando do Sul (Fonte dos dados: ANP).
Ainda, além das tendências gerais para cada curva, existem outras diferenças no comportamento dos preços praticados em diferentes períodos ao longo do tempo. Estas diferenças, como as anteriores, parecem claramente estarem associadas ao perfil político do governo ao longo da história recente. Infelizmente existem dados disponíveis apenas para os últimos três meses antes do governo de esquerda conduzido pelo Partido dos Trabalhadores (PT). Esse período corresponde ao governo conduzido pelo Partido da Social Democracia Brasileira (PSDB), que se posiciona mais ao centro do espectro ideológico. Mas, mesmo esse curto espaço de tempo mostra uma maior instabilidade dos preços quando comparado com o período correspondente ao governo de esquerda do PT, que durou de janeiro de 2003 a agosto de 2016, quando a então presidenta da república Dilma Rousseff teve seu mandato interrompido formalmente pelo impeachment, considerado por uma parcela da população e do governo como um golpe de estado. Durante o período do governo de esquerda o preço praticado pelo produtor manteve-se virtualmente inalterado, enquanto o preço ao consumidor continuou aumentando (Fig. 1).
O governo seguinte ficou a cargo do então vice-presidente Michel Temer, do Partido do Movimento Democrático Brasileiro (PMDB), um partido de centro-direita. É notável como a partir da gestão PMDB os preços tornam-se mais instáveis e tendem a aumentar mais. Esta fase de aumento e instabilidade inicia na verdade um pouco antes da troca de governo, e acompanha mais ou menos o período em que a batalha pelo manutenção ou derrubada do cargo de Dilma Rousseff se desenvolveu. Oficialmente o impeachment iniciou em dezembro de 2015 e foi encerrado em agosto de 2016, com a cassação de de Dilma Rousseff. Esse período ficou muito marcado pela atuação do parlamento no sentido de impedir a governabilidade da presidenta. A falta de governabilidade pode tender a deixar a economia à deriva no mercado.
Note que entregar a gestão dos preços ao mercado, como defendem os políticos neoliberais, pode levar a uma instabilidade e a um problema muito conhecido na economia. Após um evento negativo, como aumento de demanda, que force o aumento dos preços, os preços tendem a se manter altos em vez de voltarem aos patamares anteriores ao evento, mesmo que o fator de elevação deixe de existir. Por isso, é inerente ao mercado, devido ao conflito de interesses individuais, gerar uma instabilidade dos preços e tender a empurrar os preços para cima.
Esta relação também encontra respaldo nos dados. A Figura 4 mostra como a proporção entre o preço praticado pelo produtor e o preço ao consumidor muda ao longo tempo. No início da curva não é possível falar em tendência por corresponder a um curto período de tempo. Entretanto, fica claro a instabilidade. Já durante o período do governo de esquerda o aumento progressivo da proporção se deve a um aumento maior do preço que chega ao consumidor, enquanto o preço no produtor mantem-se inalterado (Fig. 1 e 4).
Figura 4. Variação ao longo do tempo da razão (proporção) entre o preço final ao consumidor e o preço praticado pelo produtor no brasil e no Rio Grande do Sul (Fonte dos dados: ANP).
Após a mudança de governo, nas gestões PMDB e PSL (Partido Social Liberal), a proporção da diferença entre os dois preços diminui (Fig. 4), o que indica um maior aumento do preço praticado pelo produtor, determinado pela política de preções do estado, gestor do produtor, que uma empresa estatal (Petrobras), em relação ao preço que chega no consumidor. E nesse caso, chegamos ao que me motivou a pesuisa: o aumento de preços praticados pelos governos atuais e anteriores. E fica a espectativa: como o mercado (e o preço ao consumidor) irá responder aos sucessivos aumentos praticados pelo estado nas últimas gestões? Afinal, o ajuste da economia não é automático, mas leva algum tempo.
Com base no discutido acima, é possível concluir que o estado tem um poder regulador maior sobre o preço do GLP, especialmente porque seu foco não é a maximização dos lucros, como no caso de uma empresa, que tem que lidar com várias relações comerciais bem menos reguladas pelo estado. Também é possível concluir que durante o governo de esquerda, quando há uma maior valorização do papel do estado na economia e política de preços, os preços tendem a se manter mais estáveis, mesmo os preços ao consumidor, que são influenciados por muitos fatores externos ao estado. Já nos governos mais à direita, quando o papel do mercado é mais valorizado em detrimento do estado, os preços tornam-se mais instáveis e tendem a aumentar mais.

NOTA: Este é um documento que irei atualizar periodicamente na medida em que forem disponibilizados mais dados no site da ANP. Também tentarei ampliar esta análise no sentido de incluir outros indicadores.